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Amigos, adictos, engaiolados

Atualizado: 20 de mai.

Uma gaiola está sempre à procura de um pássaro.

Franz Kafka


Conheci muita gente nas minhas internações. Também, foram mais de 20🤦‍♂️. Tentei fazer um cálculo, e cheguei à conclusão que passei mais ou menos 3 anos de minha vida dentro de clínicas para recuperação de drogados. No total foram 9 clínicas, ao longo de 37 anos. As clínicas de recuperação são, em geral, lugares de solidariedade. A maior parte das pessoas está vivendo situações difíceis. E ali encontram um bando de pobres diabos que, se não perderam tudo ou quase tudo, certamente estavam direcionados para o desastre😢.

Vidas em transe

Um amigo era um militar da reserva. Era de esquerda, algo incomum entre militares. Lia muito, falava pouco. Jamais entrava em polêmica com outros adictos. Principalmente sobre política. Mas era taxativo: se alguém disse, olha eu não sou de direita nem de esquerda - então é de direita, ele respondia. Não sou L... nem B.... Então é B. Era engraçado.


Um advogado que tinha perdido tudo. Várias internações, em clínicas e fazendas. A última coisa que a família havia feito por ele era deixá-lo na porta da clínica. Entrou, óbvio: sem dinheiro, sem casa, pelo menos ia conseguir um teto. Sabia tudo dependência química, Doze Passos, Recuperação. E afirmou: "tudo o que você aprender aqui, ao sair por aquela porta, vai esquecer"😨. E vai voltar quase que exatamente à condição mental que você chegou.


Era filho do dono de uma grande rede de supermercados. Foi visitar a clínica para mostrar o quanto estava bem. Foi bem recebido, todo mundo feliz em vê-lo tão bem. Volta dois dias depois, completamente travado, com dezenas de marcas de picos nos braços😵. Foi dali para uma fazenda, onde ia ficar um ano.


Numa época em que as pessoas podiam sair da clínica e fumar ainda era permitido. Dois homens, já próximos dos 50 anos, um preto com um grave problema cardíaco e um outro com sérios problemas de fígado, sempre meio sarcástico, principalmente com quem estava levando a sério o tratamento, saiam todas as noites e voltavam às 4 e meia da manhã, completamente bêbados. Perto da alta, ambos choravam copiosamente por terem jogado o tratamento deles no lixo😭.


O cara me diz: "eu sou um caso sui generis - eu não gosto de doces". Para com isso, meu, bebum não gosta de doces...Capaz! Bem, vamos fazer uma enquete. Fulano, você gosta de doces? Não sou muito chegado... Não, não como doces - mas agora estou comendo. Adoro doces - era o diabético...😄


O Aquário... o aquário era uma saleta de observação para doentes mais graves. O cara chegou bem, no segundo dia começou a ficar esquisito e no terceiro dia amanheceu no aquário, em Delirium Tremens. É uma coisa horrorosa de se ver: vivendo num mundo imaginário e aterrorizante, com alucinações, vendo cobras, aranhas e lagartos😱.


Adictos e alcoólicos são diferentes. Principalmente nas primeiras internações. O adicto diz: "cara , eu cheirei quilos de pó". O alcoólico: "imagina, era só uma cervejinha".


A menina aprendeu: festa para adictos é assim - os 4 S - Surgir, Saudar, Sorrir e Sumir. Ela foi à festa, fez tudo direitinho mas esqueceu o quarto S . Conheci ela na clínica uns dias depois... A outra ia 3 vezes por dia no Pronto-Socorro tomar morfina por uma dor de cabeça. Internaram ela no setor de DQ. Caminhávamos no parque perto da Clínica... o que houve com você? Sinceramente não sei o que estou fazendo aqui. Meu problema é uma dor de cabeça🙄.


Duas meninas que cheiravam uma carreira de cocaína, se transformavam, pegavam um aplicativo de encontros e saíam com o primeiro cara que aparecesse🤐.

Sapateado

O Eric Clapton, em sua biografia, falava em uma atitude de muitos adictos, principalmente nas primeiras internações. É o sapateado. O adicto entra na clínica e percebe que, se seguir as normas, consegue sair em menos tempo. Aí faz tudo direitinho, vai embora mais cedo e recai. Um amigo, em sua terceira internação sucessiva, me diz: cara, acho que aquela história de sapateado é verdade.


Estas são algumas poucas histórias de internações em dependência química. Poderia contar outras dezenas. Outra hora eu conto. Mas é o seguinte, cara: internação é foda.



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