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Foto do escritorJosé Lurker

Cuidar dos dentes é Recuperação

Atualizado: 20 de mai.

"Dentaduras duplas!

Inda não sou bem velho

para merecer-vos. ..

Há que contentar-me

com uma ponte móvel

e esparsas coroas."


Carlos Drummond de Andrade.


"O abuso de drogas está associado a graves problemas de saúde oral, incluindo cáries, doenças periodontais, displasias da mucosa, xerostomia, bruxismo, desgaste dentário e perda de dentes."


Já me falaram uma vez que o adicto que está cuidando dos dentes provavelmente está em Recuperação. As dependências químicas são uma desgraça para a saúde oral: o que se vê na boca de um adicto reflete o grau de destruição de sua vida, de seu corpo, de sua alma. Fui no dentista hoje: depois de décadas parece que meus dentes estão bons. Só preciso fazer uma limpeza, tirar os tártaros, e acompanhar. Fazia décadas que isso não acontecia. Mesmo indo regularmente ao dentista. O que não acontece com a maioria dos adictos na ativa: desleixo, falta de foco, de disciplina e de regularidade.... tantas coisas podem dificultar tratamentos dentários em adictos, além de uma série de outras coisas que não dependem dele: acesso, dinheiro, estigma....

Caça às bruxas

Existe uma extensa literatura científica sobre saúde oral e adicção. Cocaína deixa a boca seca e a pessoa fica travada: uma espécie de bruxismo químico. Os dentes quebram, as restaurações caem, o cara não volta no dentista e o cenário só piora. Álcool? Uma verdadeira tragédia para os dentes - quem, em sã consciência, quer olhar ou chegar perto da boca de um bêbado? E muitas vezes o cara também fuma, o que só piora as coisas. Tem a tríade: bebe, fuma e cheira. Quer coisa pior? Consegue imaginar o que são a boca e os dentes desta pessoa? E o adicto faz isso direto, o que o distancia ainda mais dos cuidados com a sua saúde - como um todo. Não tem como essas coisas fazerem bem para a saúde. Não precisa ter muita imaginação. E um corpo mal tratado não tem como ter a sua entrada bonitinha. Mais um problema: provavelmente o álcool e o cigarro são os grandes responsáveis pela maioria dos cânceres de boca.

Bafo de onça

Mas, em recuperação, os adictos conseguem perceber um pouco mais sobre si mesmos. Quando resolve trocar a escova de dentes, já está dando um grande passo: o Primeiro Passo. A boa notícia é que a odontologia moderna - se tivermos dinheiro para isso, porque infelizmente o acesso aos serviços públicos de saúde nesta área é muito restrito - proporciona a oportunidade da pessoa aos poucos, um dia de cada vez, recuperar os dentes. Melhorar. E isso está associado à tantas coisas positivas.... começando pela autoestima. A nutrição da pessoa vai melhorar, por uma mastigação mais natural. O mau hálito é uma coisa complicada para qualquer um, seja dependente químico ou não. Acho que nem preciso escrever aqui sobre o bafo. Livrar-se do bafo é outro passo gigantesco.

Mens sana in corpore sano

Em recuperação de uma doença física, mental, social e espiritual procuramos um olhar holístico. E talvez isso possa começar pelos dentes. Algo bem concreto, mais fácil do que acreditar na ideia de um Poder Superior. Estou bem contente com meus dentes: uma verdadeira conquista. E precisamos de pequenas conquistas para pavimentar a estrada da Recuperação. Cuidar dos dentes é cuidar da vida. Recuperação é vida. Sorria.



A Onestaldo de Pennafort


Dentaduras duplas!

Inda não sou bem velho

para merecer-vos. ..

Há que contentar-me

com uma ponte móvel

e esparsas coroas.

(Coroas sem reino,

os reinos protéticos

de onde proviestes

quando produzirão

a tripla dentadura,

dentadura múltipla,

a serra mecânica,

sempre desejada,

jamais possuída,

que acabará

com o tédio da boca,

a boca que beija,

a boca romântica ?. . . )


Resovin! Hecolite!

Nomes de países?

Fantasmas femininos?

Nunca: dentaduras,

engenhos modernos,

práticos, higiênicos,

a vida habitável:

a boca mordendo,

os delirantes lábios

apenas entreabertos

num sorriso técnico,

e a língua especiosa

através dos dentes

buscando outra língua,

afinal sossegada...

A serra mecânica

não tritura amor.

E todos os dentes

extraídos sem dor.

E a boca liberta

das funções poético-

sofístico-dramáticas

de que rezam filmes

e velhos autores.


Dentaduras duplas:

dai-me enfim a calma

que Bilac não teve

para envelhecer.

Desfibrarei convosco

doces alimentos,

serei casto, sóbrio,

não vos aplicando

na deleitação convulsa

de uma carne triste

em que tantas vezes

me eu perdi.

Largas dentaduras,

vosso riso largo

me consolará

não sei quantas fomes

ferozes, secretas

no fundo de mim.

Não sei quantas fomes

jamais compensadas.

Dentaduras alvas,

antes amarelas

e por que não cromadas

e por que não de âmbar?

de âmbar! de âmbar!

feéricas dentaduras,

admiráveis presas,

mastigando lestas

e indiferentes

a carne da vida!


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