"Bons mesmo foram aqueles tempos..." . Se existe uma armadilha para o adicto, é a memória eufórica. O que significa isso? Bem, os primeiros experimentos que a pessoa tem com a droga costumam ser agradáveis, prazeirosos, diferentes. A sensação de estar abraçando um outro mundo - de se defrontar com novas realidades, transcendendo o mundo ordinário e cotidiano. Uau. Como tempo e o uso repetido da droga, esta primeira experiência vai se desvanecendo. E a droga - e álcool é droga - vai perdendo a capacidade de gerar estas experiências agradáveis e prazeirosas, e cada vez mais vai se tornando uma necessidade. Quando a pessoa passa do rosa para o vermelho (imagem criada pela psicóloga Jandira Masur, especialista em dependência química, falecida precocemente), ou seja, quando a dependência se estabelece enquanto doença cerebral, cuja descrição como uma doença "(....) crônica, incurável, progressiva e fatal só se deu nos anos 1930 e 1940, por meio do desenvolvimento conjunto de teorias dos Alcoólicos Anônimos (AA) e de pesquisas conduzidas pelo Yale Center of Alcohol e dirigidas pelo pesquisador estadunidense E.M.Jellinek, com comprometimento psicológico, cerebral e fisiológico".
A insana busca de uma miragem
Uma vez adicto, não há cura. Existe tratamento, cujo foco é a abstinência de qualquer substância modificadora do humor. Ou seja, a doença da adicção não pode ser curada, mas pode ser detida. Sim, existem abordagens com propostas de redução de danos - que podemos comentar em outro momento. Eu, pessoalmente, não acredito em redução de danos, pelo menos para mim. Qualquer uso de substâncias, para mim, sempre terá o mesmo destino: uso compulsivo, overdose e clínicas - isso já se repetiu tantas vezes.... Também posso morrer. E não voltar para contar a história. Uma das razões para que isso se repita é a memória eufórica . A lembrança de tempos em que usar a droga trazia prazer e satisfação. O verdadeiro adicto sabe que isso é uma miragem. - nunca vai alcançar. Na verdade, ele está correndo grande risco.
Memória eufórica e gatilhos
A memória eufórica pode vir na presença de gatilhos. Pessoas, hábitos e lugares da ativa podem desencadear um fluxo acelerado de pensamentos, que vão se tornam intrusivos. Obsessivos. A memória eufórica surge como o elemento que falta, o tempero, a cereja do bolo: eu quero.
Nos meus primeiros dias de abstinência (nem falo dos períodos de ativa) o pensamento de usar cocaína era permanente: praticamente o dia inteiro. E com uma intensidade avassaladora. Acordava pensando em usar e - constantemente brigando comigo mesmo - ia dormir pensando em usar. Se você quer ter uma visão do inferno, é isso. Mas sempre com aquela visão quase fotográfica: uma longa carreira esticada , cheirar e sentir aquele momento (exíguo) de plenitude. Depois, como diz Lou Reed em Modern Dance, "it's all downhill after the first kiss". Mas a memória eufórica não enxerga você descendo a ladeira. Só o encanto. O prazer. Aquela sensação que....
Depois de um tempo, felizmente, os pensamentos obsessivos vão desaparecendo. Tem momentos que você quase se sente uma pessoa normal. Mas me surpreendo, cotidianamente. Pensando, do nada ( do nada?). Quem sabe.... Dessa vez... Putz, foi tão.
Ad infinitum. Até quando?
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