"Liguei o rádio. Além dos pensamentos, queria outros ruídos no cérebro.
Mais profanos, menos confusos."
Caio Fernando Abreu
Artigo recente, publicado na revista americana New England Journal of Medicine - NEJM, explora em profundidade a neurobiologia da adicção. A primeira constatação é que a adicção é uma doença do cérebro. Este "modelo da adicção como doença cerebral" permanece muito questionado , pois ainda é muito prevalente o modelo moral ("não para porque não quer, é um vagabundo mesmo, se tivesse força de vontade parava") ou religioso ("isso é um castigo de Deus e terá que pagar por isso"). Já o modelo de adicção como doença baseia-se em alguns fatos científicos que envolvem o Sistema de Recompensa e o Córtex Préfrontal . É a principal corrente a partir de um olhar médico da adicção. Embora praticamente consensual entre neurocientistas e psiquiatras, esta visão certamente não é predominante entre médicos e profissionais de saúde. Se formos sinceros, boa parte deles colocam-se em uma posição de superioridade, tendendo a julgar o dependente químico, a partir de um olhar essencialmente moral e estigmatizante.
O artigo foi escrito por Nora Volkow, diretora do NIDA - National Institute of Drug and Alcohol Abuse. nos EUA, e colaboradores.
Transtorno por uso de substâncias ou Adicção?
A adicção ao cigarro, álcool e outras drogas tem um custo maior que U$ 700 bilhões anuais, considerando crimes, dias perdidos no trabalho e cuidados à saúde. Uma questão interessante é que o texto diferencia o Transtorno por Uso de Substâncias de Adicção, conforme descrevemos a seguir (tradução livre): Transtorno por uso de substâncias, um termo diagnóstico na quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-5) que se refere ao consumo recorrente de álcool ou de outras drogas, que causa perturbações significativas do ponto de vista clínico e funcional, como problemas de saúde, dificuldade e incapacidade de cumprir as principais responsabilidades no trabalho, na escola ou em casa. Dependendo do nível de gravidade, esta perturbação é classificada como leve, moderada ou grave. Adicção é o termo utilizado para indicar a fase mais grave e crônica da perturbação pelo consumo de substâncias, na qual se verifica uma perda substancial de autocontrole, manifesta pelo consumo compulsivo de drogas, apesar do desejo de deixar de consumí-las. No DSM-5, o termo dependência é sinônimo da classificação de perturbação grave de consumo de substâncias.
Binge
O artigo tem uma linguagem predominantemente médica, e é dividido em partes: a primeira fala nos estágios da adicção. O Binge - uso compulsivo de grandes quantidades da substância por muitas horas - e a Intoxicação - que se refere à situação em que os circuitos cerebrais relacionados à liberação de dopamina são ativados e modificados. O circuito de recompensa, ao invés de ser acessado por estímulos naturais, passa a ser estimulado pela droga. Ambientes, pessoas e atitudes (os "evite-se" das irmandades de Doze Passos) podem levar à descargas de dopamina que provocam a fissura e comportamentos de ativa ("comportamentos de busca") podendo levar a um binge. Estas respostas condicionadas podem estar tão enraizadas no cérebro que, mesmo após muitos anos de abstinência, pode-se observar o surgimento de fissura, uma vez a pessoa sendo exposta à gatilhos. Costuma haver persistência na estimulação que as drogas produzem no circuito de recompensa, associada à liberação de dopamina - o principal neurotransmissor envolvido nas adicções , o que nos aponta para uma explicação do porquê do constante comportamento de busca.
Neuroplasticidade
Os estímulos proporcionados pela droga são muito maiores que àqueles voltados à busca natural pela recompensa, fazendo que o adicto perca seu foco em favor de comportamentos adictivos e seus gatilhos. Existe um fenômeno de difícil compreensão chamado Neuroplasticidade Cerebral. Para um adicto que lê sobre neuroplasticidade cerebral e entende muito superficialmente do que se trata, é triste se dar conta do quanto sua capacidade cognitiva, suas escolhas, a consolidação de seus hábitos e de suas memórias e emoções (entre outras coisas) foram afetadas pela exposição repetitiva às drogas. As drogas o tem comandado muito antes que ele imagina. Eu senti isso ao ler este artigo.
Recompensa e Abstinência
O uso repetitivo das drogas leva a descargas cada vez menores de dopamina, o que implica em uma intensidade cada vez menor da euforia observada nos primeiros usos, bem como a falta de interesse nos estímulos provenientes da vida cotidiana. Cada vez menos as drogas produzem algum barato.
Mas a ação da droga no cérebro é curiosa: embora o efeito da droga seja menor, o mal-estar associado à sua falta é cada vez maior. É a abstinência. Tem um momento em que, mais do que o prazer esperado no uso da droga, é o alívio da disforia provocado por ela que é buscado. Ou seja, a pessoas vais se metendo cada vez mais no lodaçal e, ao invés de esforçar-se para sair, chafurda um pouco mais. E nem percebe isso.
O lobo frontal, responsável pelas nossas funções intelectuais mais refinadas, também é gravemente comprometido pelo uso de drogas. A tomada de decisões e, de alguma maneira, a avaliação da consequências destas decisões e a capacidade de resistir à fissura estão muito fragilizadas. Em decorrência disso, o desejo mais sincero de parar de usar não consegue ser traduzido em uma efetiva parada. Não é que o adicto esteja mentindo: definitivamente ele não consegue parar de usar , mesmo diante das repercussões mais trágicas.
Um problema de saúde pública
Nem todas as pessoas que usam drogas se tornam adictas. Provavelmente existe uma vulnerabilidade genética, familiar e cultural. O uso precoce na adolescência, quando as estruturas cerebrais estão em formação, potencializa o risco. Comorbidades como bipolaridade, TDAH, ansiedade e esquizofrenia podem contribuir para a eclosão da adicção, fenômeno patológico caracterizado pela modificação da plasticidade cerebral determinada, em geral, pelo uso prolongado e repetitivo de drogas.
A compreensão da adicção à luz desta ideia de uma doença cerebral permitiria uma atitude menos moralista e a criação de modelos para uma abordagem terapêutica mais baseada em evidências, além da criação de políticas públicas relativas à prevenção e atenção à saúde destas pessoas. A adolescência é um período da vida de alto risco para o desenvolvimento de comportamentos adictivos e devia ser vista como uma ocasião essencial para intervenções terapêuticas. A oferta de tratamentos medicamentosos em situações específicas é importante. Estratégias comportamentais como o estímulo à prática de atividade física, orientação sobre técnicas de manejo da fissura e prevenção da recaída podem trazer impactos positivos.
Uma questão muito relevante: na medida em que a maturidade cerebral se dá em torno dos 21 aos 25 anos de idade, é absolutamente natural que a liberação do consumo de álcool se dê a partir dos 21 anos. Isso pode impactar positivamente a sociedade. Outra questão é o preparo dos sistemas públicos de saúde para o acolhimento e manejo terapêutico dos dependentes químicos, dentro de uma perspectiva clínica e não moralista. "Se o uso voluntário e precoce de drogas não é detectado e checado, as modificações resultantes no cérebro podem levar à erosão da habilidade da pessoa em controlar o impulso de usar drogas psicoativas". Prevenir quando der, evitar a progressão e cuidar de quem já está doente. No fundo, é isso.
PS: este post é baseado em artigo publicado no NEJM , e alguns trechos narram impressões pessoais do autor. A gravura que ilustra o post foi retirada por próprio corpo do artigo, que pode ser acessado no link disponibilizado no início do texto.
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