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Recaída

Atualizado: 20 de mai.

"Raramente vimos alguém fracassar tendo seguido cuidadosamente nosso caminho. Os que não se recuperam são pessoas que não conseguem ou não querem se entregar por completo a este programa simples, em geral homens e mulheres que, por natureza, são incapazes de ser honestos consigo mesmos. Existem tais desafortunados. Não é sua culpa, parecem ter nascido assim. São naturalmente incapazes de aceitar e desenvolver um modo de vida que requeira total honestidade. Suas chances são inferiores à média. Existem, também, as que sofrem de graves distúrbios mentais e emocionais, mas muitas delas recuperam-se, se tiverem a capacidade de serem honestas."

Chronic relapsing

Toda vez que eu ouvia estas palavras numa reunião de Alcoólicos Anônimos, eu enrubescia.

Seria eu desonesto? Teria graves distúrbios mentais? Estas palavras são lidas no decorrer das reuniões de AA, pelo coordenador, e são retiradas do Capítulo V do Livro Azul, "Como Funciona". Na minha vida de adicção - que começou na adolescência e se prolongou no decorrer da vida adulta (será que posso dizer, até meus primeiros passos na velhice?) a recaída esteve presente permanentemente. Nem sei se posso falar de recaída. Uma ocasião um psiquiatra me falou que eu usei drogas a vida inteira, com alguns períodos sem usá-las, aqui e ali. Que estava na hora de eu experimentar a vida sem drogas. Isso não faz muito tempo. Existe uma espressão em língua inglesa que é "chronic relapser". Minha vida, nas últimas décadas, caracterizou-se por um sem-número de tentativas de permanecer sóbrio e um sem número de recaídas. Um verdadeiro inferno. Para o adicto, a eterna tentativa de recuperar-se do uso e de suas consequências dilacerantes (físicas, psíquicas, morais, econômicas, sociais, familiares, laborais, amorosas, espirituais, e a conta não pára de crescer...) e para a famílias - filhos, pais, irmãos, cônjuges, recaída é uma palavra que só pode ser traduzida por terror. Os amigos balançam a cabeça. Os colegas de trabalho são ambivalentes... Coitado, mas.... De novo? Não dá para saber quem sofre mais. Além da sensação de fracasso, a dor incomensurável, a vergonha, o mal-estar, a sensação de perda do sentido da vida e da total perda de controle, o adicto se vê incapaz de enfrentar a perspectiva de recuperar-se. Mas a dor nos olhos dos filhos, dos pais, dos pares amorosos é expressa de forma incontestável. Mas os dias passam, as coisas parecem se encaixar, às vezes meses e mesmo anos. Mas se a recuperação não estiver consolidada e nutrida um dia de cada vez, a recaída pode acontecer. E muitas vezes é pior do que antes.


Lapsos?

Teoricamente existem os Lapsos e as Recaídas. É uma divisão pouco prática - da perspectiva de um adicto. O lapso seria um uso da substância de escolha por um curto período de tempo, em pequenas quantidades, depois de um período limpo. A pessoa puxa o freio e volta imediatamente ao caminho da Recuperação. Recaída é quando o adicto - lembrem-se que álcool é droga - volta a um padrão de consumo que tinha (eventualmente mais grave) antes de entrar em abstinência. A questão de que é pouco prática é de ordem pessoal. Creio que tive muito poucos lapsos, se os tive. Na maior parte das vezes o lapso, em poucos dias, se tornava uma recaída. Isso é compatível com a neurobiologia da adicção e que é corroborado pela máxima das irmandades de Doze Passos: Evite a primeira dose. Colocar os neurônios em contato com a substância, por mínima que seja a dose, é acordar o monstro. E somos impotentes perante nossa adicção. Admitir isso não é o primeiro passo?


Prevenção da Recaída

É possível evitar uma recaída? Sim, é possível. Na minha visão, a recaída nunca acontece por acaso. "Quando vi, eu já estava.... - bebendo, usando, jogando, etc". É frequente ouvirmos esta afirmação. Mas acredito que a recaída se inicia muito antes do ato de usar, que é a cereja do bolo. Pensamentos, pequenas atitudes, mensagens, lugares, pessoas e hábitos da ativa. Parece-me que existe "uma arquitetura da recaída", que vai se delineando e modificando a atitude mental. E isso ocorre de maneira capciosa, sorrateira. A própria pessoa não se dá conta de que está começando a trilhar um caminho perigoso. Ou talvez se dê conta, mas a neuroquímica cerebral já está funcionando no modus adictus (neologismo do autor). A capacidade de escolha está definhando. A tomada de decisões está comprometida. Hora de pedir ajuda! Sim, mas o pedido de ajuda já devia ter sido feito muito antes. Tem um momento que o adicto não quer mais pedir ajuda. Qualquer ajuda pode demovê-lo do objetivo praticamente já traçado: usar a droga. Dá para abortar a Recaída neste momento? Dá. Mas é difícil. A Prevenção da Recaída é exatamente não deixar as coisas chegarem neste ponto. É saber pedir ajuda - para o padrinho, terapeuta, amigo, companheiro de AA, NA, CA, família - quando os primeiros pensamentos ou atitudes inadequados principiarem a surgir. Mas a Prevenção da Recaída mais eficiente é uma Recuperação sólida, nutrida e trabalhada um dia de cada vez. Exercícios, meditação, trabalho de Passos, frequência à reuniões, suporte psiquiátrico, uso adequado dos medicamentos - seguindo rigorosamente a prescrição médica - uso das ferramentas que os grupos de mútua ajuda oferecem, a fidelidade aos princípios espirituais, são todos elementos que devem estar presentes no cotidiano de um adicto em recuperação. A Prevenção da Recaída foi estudada de maneira muito profunda pelo psicólogo americano G. Allan Marlatt. E o que ele propõe, de uma maneira clínica, mais sofisticada, é agir de maneira incisiva nos primeiros sinais, quando as primeiras nuvens escuras surgem no horizonte. Senão, o barco pode afundar. E o mar está cheio de tubarões.




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